A separação entre política monetária e a infraestrutura do dinheiro

Uma proposta para combater um futuro orwelliano no qual empresas e governos detém informações sobre a vida privada dos cidadãos

Por Cadu Russo  /  8 de fevereiro de 2019
(Photo by Thought Catalog on Unsplash) (Photo by Thought Catalog on Unsplash)

A estabilidade do poder de compra é componente central de qualquer moeda fiduciária. Sem ela, a moeda não pode ser usada como reserva de valor, pois o valor da poupança dos indivíduos poderia evaporar do dia para a noite. A volatilidade dos preços também é inaceitável para os meios de troca por um motivo semelhante, uma vez que introduz o risco de apreciação da moeda por parte do comprador e o risco de depreciação do ativo por parte do vendedor.

Como membros da indústria, reconhecemos e apoiamos todas as rupturas apresentadas por Satoshi Nakamoto com o protocolo Bitcoin em seu famoso white paper, mas não podemos ignorar algumas de suas barreiras fundamentais para se tornar uma moeda amplamente utilizada, sendo as principais razões por trás disso os pontos mencionados acima. Sua inflexível escassez é fundamental do ponto de vista macroeconômico, mas na prática, deu ao Bitcoin um comportamento semelhante a um ativo de alto risco, que enriqueceu enormemente os primeiros investidores e alienou os que chegaram mais tarde em uma sequência de bolhas de curto prazo desde a sua criação.

Homem na corda bamba

Para superar essa limitação, muitos economistas e desenvolvedores de blockchain têm feito parcerias com empresas de capital de risco para reproduzir em criptomoeda o mecanismo necessário para manter seu poder de compra relativamente estável ao longo do tempo. O objetivo até aqui tem sido reproduzir o mecanismo de contração e expansão da oferta de moeda, criando mercados abertos para títulos denominados na criptomoeda subjacente.

Embora esse mecanismo seja largamente utilizado pelos bancos centrais para controlar a inflação, a pequena escala dos chamados projetos de “moeda estável” torna-os altamente vulneráveis a ataques especulativos e, consequentemente, ao fracasso da política monetária pretendida.

Apesar de concordarmos que as ditas stablecoins certamente encontrariam espaço nas economias afetadas por controles de capital explícitos ou implícitos, o objetivo de substituir o controle do governo na política monetária poderia retirar a capacidade das nações de influenciar a atividade econômica em tempos de superaquecimento ou desaceleração econômica.

Além disso, tentar reproduzir um processo que já existe é gastar recursos e tempo na criação de uma solução excessivamente complexa para um problema que já é enfrentado pelos bancos centrais.

Poder aos cidadãos

Em relação às criptomoedas tradicionais, como o bitcoin, o principal benefício para as pessoas era a criação de um ativo que fosse perene e impossível de ser confiscado por governos tirânicos. Embora as democracias liberais modernas estabeleçam, no papel, as liberdades fundamentais para a sociedade, nada disso pode ser alcançado em última instância sem a existência de um ativo de fácil custódia que não é controlado ou supervisionado por nenhum governo. Nesse sentido, o bitcoin deu poder aos cidadãos para custodiar ativos por meio de um método puramente privado.

Menininha revistando soldado. Obra em grafite do artista Bansky

Obra em grafite do artista Bansky.

Unindo os benefícios da supervisão do Estado sobre a estabilidade do poder de compra da moeda – possível por meio de políticas monetárias executadas pelos Bancos Centrais e políticas fiscais executadas pelo Governo – e os benefícios derivados do controle absoluto, por parte dos cidadãos sobre seus ativos – permitido apenas pela tecnologia blockchain –, teremos o casamento perfeito para a adoção em massa das criptomoedas.

O melhor dos dois mundos

Para enfrentar este desafio, proponho um sistema de pagamentos independente baseado em tokens, alimentado por uma blockchain bem estabelecida, que permitirá que as pessoas mantenham ativos digitais respaldados por títulos emitidos pelo Estado, atrelando esses ativos digitais ou tokens à moeda fiduciária subjacente do título. Esta solução permitirá a livre circulação de “dinheiro” em todo o mundo, separando, assim, o papel do governo na definição da política monetária da infraestrutura utilizada para a troca de dinheiro.

Atualmente, nosso sistema financeiro está baseado na engenhosidade dos bancos centrais para operar políticas monetárias, enquanto a infraestrutura que permite o livre comércio na sociedade depende da rede de pagamentos interbancários operada pelas instituições financeiras. A onipresença atual da infraestrutura de pagamentos eletrônicos na troca de bens e serviços está facilitando enormemente a dinamicidade do comércio, mas governos e empresas privadas estão obtendo acesso injusto a dados sobre o comportamento de consumo dos cidadãos.

Clique aqui e leia também: Israel e o ambiente para emissão de uma criptomoeda soberana

Uma criptomoeda baseada em blockchain, lastreada em moeda fiduciária, não é algo novo, com vários projetos semelhantes que afirmam ter a melhor e a mais confiável solução. Atualmente, o protocolo mais utilizado é o USD tether, embora outros projetos tenham aumentado em importância nos últimos anos, como o trueUSD e o Gemini Dollar. Esses projetos estão listados em bolsas de ativos digitais estabelecidas, fornecendo, assim, um instrumento para trades que é, até certo ponto, independente dos mecanismos bancários tradicionais.

Os ativos digitais mencionados acima têm desempenho muito melhor do que o bitcoin em termos de manter a estabilidade do poder de compra, mas seu protocolo apresenta várias limitações e riscos. A maioria dos projetos de stablecoins, por exemplo, usa dinheiro em uma conta bancária como uma forma de lastrear o total de tokens em circulação, mantendo-se assim a paridade. Em caso de falência da instituição financeira responsável pela custódia, a maior parte do dinheiro usado como garantia desapareceria subitamente, já que as instituições que asseguram contas-correntes só podem garantir até um certo valor por titular da conta.

Menor risco

Usando um método diferente, o protocolo que proponho envolve a utilização de títulos emitidos pelo governo como garantia. O uso de títulos como lastro traz vários benefícios. Em primeiro lugar, ele ignora os bancos como custodiantes, transferindo assim o risco baseado em uma instituição para um risco macroeconômico de default da dívida soberana. Outro benefício importante é a possibilidade teórica de o departamento de Tesouro do governo emitir diretamente títulos em troca de novos tokens, usando um protocolo baseado em blockchain. Um contrato inteligente seria responsável pela geração de novos tokens quando da emissão de títulos do governo. De fato, todo o processo poderia ser automatizado quando a revolução dos títulos digitais permitisse que os países emitissem dívida soberana usando a tecnologia blockchain.

Por fim, e corroborando as palavras de Nassim Taleb no prefácio do livro “The Bitcoin Standard”, um ecossistema que permitisse a livre troca e circulação de valor através de uma moeda baseada em blockchain nos daria uma apólice de seguro contra um futuro orwelliano, ou seja, um futuro em que governos e organismos privados detém toda a informação sobre nossas vidas.


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