O que os cypherpunks (e o ouro) têm a ver com a regulamentação dos criptoativos?

O advogado, Felipe Américo Moraes, traça os precedentes que podem balizar a regulação do setor. Spoiler: tem cypherpunks.

Por Redação  /  29 de julho de 2022
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A pressão para a criação de regulamentações para os criptoativos é mundial. No Brasil, um projeto de lei foi aprovado pelo Senado no final de abril. Na Europa, a Markets in Crypto-Assets (MiCa) deve entrar em vigor em 2024 e ainda gera discussão. Nos Estados Unidos, há a pesquisa para um projeto de regulamentação internacional dos criptoativos.

A questão que fica para o mercado é: a regulamentação será suave ou agressiva?

Para entender qual o caminho que será traçado, é preciso passar por dois temas essenciais para o bitcoin: os cypherpunks e o ouro. Pelo menos é o que explicou Felipe Américo Moraes, mestre em Direito da Universidade de Curitiba e autor do livro “Bitcoin e Lavagem de Dinheiro”, em entrevista ao Panorama Crypto.

Em ondas como o mar (e a tecnologia)

Antes de tudo, um spoiler: para Moraes, a previsão é de que a regulamentação seja suave. “Não vão querer fazer o usuário fugir para os cantos da internet”, disse ele. Mas é preciso entender quais são as forças que atuam nesses movimentos.

A tecnologia passa por ondas de regulamentação, explica Moraes. A primeira fase do Estado é tentar proibir a tecnologia, pois ela é vista como uma ameaça. Depois tentam controlá-la, baseado em outras atividades sobre as quais ele já tem conhecimento prévio. “Quando eles percebem que isso não é possível, há uma terceira etapa, que é a de criar uma nova regulamentação para um ambiente que é igualmente novo”, comenta.

E é ao criar essas novas regulamentações e visão de mundo que surgem os embates. Um dos principais é saber como criar leis e regras para dar mais segurança para o mercado operar sem gerar atritos. O ponto da descentralização também é assunto a ser entendido pelos reguladores, já que é neste lugar que reside a grande quebra que os criptoativos trazem em comparação ao “mundo financeiro tradicional”. 

Cypherpunks na linha do front

Há algumas décadas, o debate sobre privacidade e segurança no meio digital recaía no mundo cripto, mais especificamente o da criptografia digital.

Até o começo dos anos 90, os governos, principalmente o norte-americano, tinham domínio sobre as ferramentas de criptografia vendidas por empresas. Ou seja, toda plataforma criptográfica que saia dos Estados Unidos, na época pré-internet, era padronizada e produzida pelo governo.  Nos anos 90, o início dos PCs e o nascimento da distribuição das informações via internet mudou tudo.

Com as possibilidades que a internet trouxe, a demanda pela criptografia individual aumentou. Por mais que, na época, esse meio fosse usado primariamente para mandar mensagens e estabelecer comunicação de documentos, era necessário um grau de criptografia individual — e de liberdades individuais — que não eram garantidas pelas ferramentas do governo.

Nessa esteira, Phill Zimmerman inventou o PGP, um software de criptografia usado para assegurar transações de dados online. Em 1993, o governo norte-americano incriminou Zimmerman e tentou prendê-lo. A justificativa: a criptografia não poderia ser exportada por um cidadão comum, porque ela era um tipo de proteção que só podia ser oferecida pelo Estado. O processo que se seguiu a esse primeiro embate foi chamado de “cripto wars”.

“O Estado tentou controlar e proibir a comunicação criptografada no passado. O discurso na época da cripto war foi um esforço para conectar a criptografia a crimes. O que criou um medo gigante no público e tentou justificar o excesso de vigilância”, fala Moraes. A ação dos EUA encontrou uma resistência ferrenha: os cypherpunks.

Em 1993, o matemático Eric Hughes lançou o manifesto Cypherpunk. O documento se tornou pedra fundamental para as discussões sobre privacidade na era digital. Mas, na época, foi uma forma do mundo da tecnologia se proteger da intervenção do Estado na criptografia. “Nós, os cypherpunks, nos dedicamos a criar sistemas anônimos. Nós defendemos nossa privacidade com criptografia, com sistemas de mensagem, assinaturas digitais e dinheiro eletrônico”.

Uma das linhas desse manifesto, inclusive, é vista até hoje, como a base para a criação dos criptoativos: “a privacidade numa sociedade aberta requer sistemas de transação anônimo”. O governo norte-americano acabou deixando de lado o processo contra Zimmerman e reconheceu, em falas do Congresso, que a criptografia era um assunto “de liberdade de expressão e não de ameaça à segurança”.

“Os cypherpunks venceram, então? Engano total. Esse período de regulação foi apenas a primeira onda. A segunda onda foi oculta, mais indireta. Eles entenderam que não podiam controlar a internet por meio dos indivíduos, mas por meio dos intermediários dos serviços”, aponta o escritor e especialista em direito digital.

“Essa bagagem forma um pano de fundo para discutir como o Estado está pensando em regulação de criptoativos de maneira geral”, diz Moraes. Para ele, o que os governos aprenderam com o cripto war foi que é impossível controlar o uso privado de certas tecnologias, mas é possível regulamentar a cadeia como um todo.

Levando dos anos 90 para cá, o discurso pode ser entendido como: as carteiras individuais não serão proibidas ou controladas. A UE mesmo, diz Moraes, deixou de lado a parte do MiCa que tentava controlar carteiras privadas.

Além disso, o que os governos descobriram com esse caso foi que a ação agressiva teve a consequência contrária do esperado. No lugar de afastar as pessoas do cripto, criou uma comunidade e ainda permitiu que o software de criptografia PGP fosse compartilhado gratuitamente. Para os padrões regulatórios da época, isso significou levar as pessoas para um território menos controlado.

“A proibição foi um incentivo para o mercado desenvolver a tecnologia”, disse Moraes.

Em outras palavras, o ocorrido na cripto war trouxe um passo mais cuidadoso para os governos. “Eles sabem que se regularem errado podem criar incentivo para os usuários irem para outro caminho no qual seja impossível estabelecer regras”, disse o advogado.

Bitcoin x outros criptoativos

O pensamento faz sentido quando se trata de bitcoin e regulamentação de criptoativos, já que uma das maiores preocupações com relação à segurança é a fuga dos usuários para ambientes menos “vistos” pela lei. Para Moraes, tal visão também mostra que o Governo e a regulamentação tendem a privilegiar exchanges centralizadas.

O Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI) já tem orientações para exchanges centralizadas. E elas já cumprem as regras de compliance. “As descentralizadas apresentam um risco jurídico, já que elas não têm a quem aplicar a sanção”, comenta o advogado.

Meios de DeFi e criptoativos “diferentes do bitcoin, que já é entendido”, passarão por olhos mais atentos dos legisladores. Isso não quer dizer, no entanto, que as leis serão mais duras com esses ativos, apenas que serão necessárias mais discussões para que os governos entendam quais são as áreas de ação para prevenir riscos nesses espaços.

“A preocupação que eu tenho é a regulação das novas tecnologias, sobretudo aquelas que não estão relacionadas ao bitcoin — que é muito claro, transparente e estático. Em qualquer outro criptoativo, a incerteza é grande. E é uma ameaça maior ao status quo do Estado, são ativos que podem acabar com instituições grandes, o que o Estado tende a proteger mais”, explica o advogado.

Suavidade e o ouro

“Dizer que a regulamentação vai ser suave não quer dizer que não vai machucar o mercado, mas que vai moldá-lo”, diz o advogado. Segundo Felipe, a dificuldade das leis entenderem criptoativos está na complexidade de se fazer analogias com o mundo conhecido. “Se fazem analogias erradas, é porque tentam entender o comportamento cripto como se fosse o mesmo do mercado tradicional. No bitcoin, tudo é assinatura digital, tudo é código”, disse Moraes.

“A gente já teve ouro, que é uma pedra, e o Estado abraçou como moeda. E se você manipular o preço do ouro é crime”, lembra o advogado, indicando que a regulamentação dos criptoativos poderá trazer segurança para o mercado.

“É inevitável o Estado abraçar os ativos, por mais que eles nasçam descentralizados. Vai ser integrado ao sistema financeiro, como um ativo, como o ouro, que era uma pedra, mas ganhou utilidade financeira. Se tem utilidade, o Estado vai proteger de alguma maneira”, finaliza Moraes.


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