El Salvador: como é no país que tem bitcoin como moeda oficial?

Embora a “Lei Bitcoin” venha enfrentando resistências, El Salvador segue com a decisão; conheça melhor a história, política e economia do país

Por Redação  /  28 de junho de 2021
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El Salvador se tornou o primeiro país a aceitar o bitcoin como moeda de curso legal por várias razões, inclusive de cunho político e econômico. Esse marco histórico para a área de criptomoedas também indica uma possível tendência a ser seguida por outras nações.

A história de El Salvador é marcada por golpes de estado, guerra civil e economia frágil. Desde 2001, o país já não tinha uma moeda própria, ano em que adotou o dólar como moeda corrente oficial. Empresários comemoraram a decisão, já que boa parte dos cidadãos não têm serviços financeiros disponíveis.

Assim, a decisão sobre o uso do bitcoin, apesar de ser questionada por alguns deputados salvadorenhos e enfrentar resistência do Banco Mundial, foi uma alternativa para escapar das altas taxas bancárias e aumentar o acesso ao sistema financeiro.

Economia em El Salvador é uma das motivações da Lei Bitcoin

Diante de tantas instabilidades políticas, o país tem uma economia frágil baseada no cultivo e exportação de café, cana-de-açúcar e camarão. Por esses e outros motivos, quase metade dos habitantes vive abaixo da linha de pobreza e a violência em El Salvador cresceu por causa do narcotráfico.

Vários cidadãos se refugiaram em outros países e ajudam os familiares que ficaram por meio da remessa de dólares ou com criptomoedas. Além das altas taxas pelas operações bancárias, outro problema enfretado por quem recebia remessas do exterior era a presença de criminosos perto de caixas eletrônicos tentando roubar os valores sacados. Assim, o bitcoin já era uma forma dos salvadorenhos no exterior enviarem dinheiro para o país de forma informal.

Então, Bukele aprovou o uso do bitcoin como moeda legal no país alegando simplificar a vida de salvadorenhos que recebem dinheiro de parentes no exterior. Assim, a decisão facilitou tais transações e também contribuiu para que a população pague menos taxas aos bancos norte-americanos.

A medida chega a ter caráter populista, uma vez que cerca de 70% da população do país está fora do sistema bancário. Com a aprovação da Lei Bitcoin, será possível fazer compras e pagar contas com a criptomoeda, sem a necessidade de arcar com as taxas bancárias. Por isso, acredita-se também que a adoção do bitcoin ajudará no desenvolvimento da economia do país. 

Entretanto, certamente existem outros interesses, afinal, El Salvador deixa de depender do dólar americano, havia o planejamento de mineração de bitcoin pela estatal de energia LaGeo e o país começou a usar energia geotérmica para minerar a criptomoeda.

Leia mais: O que está por trás da decisão de El Salvador em aceitar o bitcoin como moeda legal

O que mudou?

A “Lei do Bitcoin” promulgada no dia 7 de setembro de 2021 oficializou o BTC como uma das moedas de El Salvador. Na prática, virou obrigatório aceitar a criptomoeda como forma de pagamento, caso haja possibilidade tecnológica.

Além disso, foram instalados caixas eletrônicos que permitem a conversão de bitcoin em dólares sem retirar comissão da carteira digital. O governo também distribuiu US$ 30 em BTC para cada cidadão do país.

El Salvador já havia comprado 200 bitcoins antes de oficializar a decisão, o que ajudou a elevar o preço da criptomoeda acima de US$ 5 mil na época. Depois, adquiriu mais 1.801 unidades do criptoativo pelo custo aproximado de US$ 90 milhões.

Uma das razões desse acúmulo é a criptomoeda ser considerada um instrumento de reserva de valor e proteção contra a inflação.

Por que essa decisão é importante?

A medida de El Salvador é um marco histórico para as criptomoedas e sobretudo para o bitcoin. E será um grande teste para a criptomoeda líder e para a sua Lightning Network, camada de transações rápidas e escaláveis da moeda. Sem essa camada, é possível que a adoção do bitcoin não fosse possível já que as transações podem levar de minutos a horas para se concretizarem.

Há um sentimento no mercado de que outros países podem seguir pelo mesmo caminho, a exemplo do que aconteceu quando a Microstrategy informou que compraria bitcoin para ter em caixa. A Índia, por exemplo, que queria proibir a moeda, já sinalizou que pode aceitá-la.

No caso de El Salvador, a decisão pode melhorar a economia do país. Antes do bitcoin, as remessas enviadas por salvadorenhos que residem em outros países equivalem a 22% do Produto Interno Bruto (PIB) e, neste processo, perdiam boa parte de sua renda para os bancos, por causa do pagamento de taxas de remessas abusivas. Assim, com a criptomoeda, essas pessoas passaram a receber as remessas em moeda forte, pelo celular ou computador, sem exposição a riscos. 

Como foi a repecurssão da adesão oficial?

O dia da decisão foi marcado por projeções otimistas acerca dos efeitos dessa decisão e também por cerca resistência e pequenos protestos da população na capital salvadorenha. Os protestos foram organizados por grupos que fazem oposição ao governo de Nayib Bukele. A principal alegação dos manifestantes é que a adoção do bitcoin pode prejudicar a economia do país e que as reais necessidades do povo não estão sendo ouvidas.

Alguns cidadãos ouvidos pela CNN Brasil estavam otimistas. “Vai ser benéfico… temos família nos Estados Unidos e eles podem enviar dinheiro sem custo, enquanto os bancos cobram”, disse Reina Isabel Aguilar, dona de uma loja na praia de El Zonte.

Algum tempo depois da adoção do bitcoin no país ainda existiam diversos desafios, como explica o diretor de produtos e parcerias da Transfero, Safiri Felix. Embora o bitcoin esteja estampado em cartazes pela rua, a população estava desconfiada em relação aos benefícios e riscos envolvidos.

Muitos continuaram preferindo o dólar ao bitcoin para suas transações cotidianas pela comodidade apresentada pela moeda americana que faz parte da economia local desde 2001. Com menos de três meses de adoção do bitcoin, ainda existem grandes desafios para uma melhor aceitação pela população.

“A população já sabe que está disponível (o bitcoin), mas a adesão não é muito grande. Sendo um experimento recente, o cidadão comum ainda não sente tão confortável em aderir ao BTC como meio de pagamento. (Existem) críticas sobre como o processo de (adoção) foi implementado. Na avaliação geral foi um processo muito rápido sem educarem previamente as pessoas”

O sentimento é de insegurança para a maioria da população, que ainda não sabe operar o bitcoin. Mesmo com o governo criando uma wallet para distribuir gratuitamente US$ 30 em bitcoin, a adoção da moeda digital ainda enfrenta o desafio da desinformação.

Além de todos esses entraves para a adoção da moeda digital no país, existe um grande problema com a instabilidade da internet em El Salvador. Para manter o bitcoin como moeda de uso diário, esse pode ser mais um “gargalo” para o criptoativo.

Economia de El Salvador enfrenta problemas após adoção de bitcoin

Com a desvalorização do bitcoin causada pelo bear market em 2022, a reserva em criptoativo de El Salvador teve prejuízo de cerca de US$ 69 milhões considerando valores do período. Entretanto, mesmo com a desvalorização acentuada do bitcoin, El Salvador continuou a acumular o criptoativo.

A situação agravou a economia fragilizada e El Salvador registrou um risco de 35% de inadimplência no pagamento de sua dívida externa. Além disso, desde a adoção do bitcoin, os títulos de dívida do país de 2023 caíram expressivamente no mercado, perdendo mais de 20% em apenas quatro meses.

Em busca de equilibrar as contas, El Salvador solicitou recentemente ao FMI um novo empréstimo de US$ 1,3 bilhão. Mas, antes de aprovar a solicitação do dinheiro, o fundo publicou um relatório pedindo ao país para abandonar o bitcoin.

Além disso, após adotar o bitcoin como moeda oficial, El Salvador segue enfrentando problemas em sua economia. Com uma dívida externa que deve continuar crescendo nos próximos anos e o aumento de risco de inadimplência, a adoção do criptoativo não fez bem para as finanças do país sul-americano.

El Salvador foi o primeiro e único país no mundo, até agora, a adotar o bitcoin como moeda oficial. Mas, o pioneirismo do presidente Nayib Bukele não será capaz de deter o crescimento da dívida externa que estava avaliada em 89% do PIB de El Salvador, por exemplo. Inclusive, a dívida aumentou entre 5% a 6% do PIB em 2021, ano em que o bitcoin foi anunciado como moeda oficial.

Resultados da Lei do Bitcoin

Segundo um relatório do Banco Central do país divulgado em 2022, foram enviados mais de R$ 600 milhões em criptoativos enviados em remessas para familiares no ano. Segundo o Banco, houve um aumento de 3,4% no envio de valores em comparação entre 2021 e 2022, o que representa 22 milhões de transações financeiras.

No total, os criptoativos representaram 1,7% do total de remessas familiares enviadas para El Salvador entre janeiro e novembro de 2022. Esse envio aconteceu através de operações com carteiras digitais, e exprime um aumento da adoção de ativos digitais pela população.

No último ano, El Salvador recebeu quase US$ 7 bilhões em remessas familiares, que representam a transferência de valores através dos cidadãos que vivem fora do país. Cerca de 93% do total foi enviado dos Estados Unidos, mas as remessas também foram enviadas da Espanha, Itália e Reino Unido.

Reserva de bitcoin (BTC) de El Salvador

Desde setembro de 2021, El Salvador está acumulando bitcoins. A primeira compra da moeda digital aconteceu no dia 6 de setembro de 2021, um dia antes de El Salvador declarar o bitcoin como moeda oficial.

Naquele dia, o país realizou duas compras do criptoativo no total de 400 unidades, e pagou cerca de US$ 51,2 mil por cada uma delas. Um dia após comprar 400 bitcoins, El Salvador decidiu comprar mais 150 unidades da moeda digital, e pagou US$ 52,172 em cada unidade. Por fim, o país comprou mais 150 unidades no dia 19 de setembro, aproveitando que o criptoativo despencou para US$ 45 mil. Com isso, o país tinha 700 unidades de bitcoin armazenadas.

Em outubro de 2021, o presidente Nayib Bukele anunciou a compra de mais 420 unidades da moeda digital. De acordo com anúncio do presidente de El Salvador no Twitter, o país aproveitou a correção do bitcoin para realizar uma nova rodada de compras do criptoativo. No total, cada unidade de bitcoin foi comprada por cerca de US$ 58,2 mil, conforme diz o levantamento do perfil Disruptiva.

Em maio de 2022, o país latino-americano adquiriu mais 500 unidades da moeda digital. Em junho, o país já tinha acumulado mais de 2,3 mil unidades de bitcoin.

A queda do preço do criptoativo durante o bear market reduziu significativamente o valor do saldo total do país, ainda assim, as reservas foram mantidas. Além disso, o país aproveitou a baixa para aumentar o investimento na reserva e aumentou a compra de bitcoins.

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Nayib Bukele, presidente de El Salvador: autoritário ou visionário?

A medida de adotar bitcoin foi aprovada pelo Congresso e pelo presidente Nayib Bukele. Isso despertou a atenção sobre a figura de Bukele, um tanto quanto diferente da imagem convencional de um chefe de nação.

Com apenas 39 anos, o jovem costuma se apresentar publicamente com um boné de time de basebol, com a aba virada para trás. De ascendência palestina, ele sempre tentou se mostrar uma figura próxima do povo. Essa imagem é reforçada pela presença nas redes sociais e ações como a da sua posse como presidente (2019). A celebração foi uma cerimônia ao ar livre, em uma praça no centro de San Salvador.

No entanto, por trás dessa imagem acessível, existem muitas estratégias políticas. A própria decisão de passar a aceitar o bitcoin como moeda de curso legal no país pode ser considerada uma delas.

Bukele colocou fim ao bipartidarismo em El Salvador

Desde 1989, dois principais partidos políticos (FMLN e Arena) dominavam as eleições presidenciais em El Salvador. No entanto, Bukele concorreu como candidato do partido de centro-direita GANA.

Para entender melhor, é preciso voltar um pouco na história. Em 2012, quando tinha apenas 21 anos, Bukele foi eleito prefeito da cidade de Nuevo Cuscatlán, perto da capital do país San Salvador. Sem a atenção da mídia, passou a divulgar suas ações em redes sociais. Na época, ele ainda integrava o FMNL. Em 2015 foi eleito, pelo mesmo partido, à prefeitura de San Salvador.

Na ocasião, ele recusou participar de entrevistas e debates, alegando que tais eventos tinham intenção de prejudicá-lo. Por isso, interagiu com seus seguidores por meio das redes sociais, opinando contra a corrupção e os pactos dos partidos tradicionais. Por suas ações, em outubro de 2017, acabou sendo expulso do FMLN.

Em 2019, foi eleito presidente do país pelo GANA, mas logo em seguida formalizou legalmente o partido Novas Ideias (NI). Ao formar seu novo governo, trocou todos os ministros, com exceção de Nelson Fuentes, titular da Fazenda – o qual acabou deixando o cargo um ano depois.

Em 2021, nas eleições legislativas e municipais, o partido governista Novas Ideias alcançou a maioria na nova Assembleia Legislativa, o que permitiu que Bukele não precise formalizar nenhuma aliança para aprovar qualquer iniciativa.

Figura polêmica

Apesar dessa aprovação e do discurso de acabar com a corrupção no país, Bukele está sendo investigado pelo Ministério Público de El Salvador por suposta lavagem de dinheiro, fraude e evasão fiscal durante seu mandato como prefeito.

Além disso, sob o comando de Bukele, o país vive uma escalada autoritária. Alguns exemplos disso são o fato dele ter invadido a Assembleia (em 2020) impondo um empréstimo de US$ 109 milhões para financiar a segurança do país, a suspeita de ter negociado, secretamente, um acordo com a gangue mais poderosa do país, a Mara Salvatrucha, relaxando as condições prisionais em troca de apoio e redução da criminalidade, e a destituição de juízes da Suprema Corte, em maio deste ano.

Golpes e guerra civil marcaram a história de El Salvador

A história de El Salvador, ao longo do século XX, inclui sucessivos golpes de estado, eleições fraudulentas, repressão à oposição e episódios de violação aos direitos humanos. Esse cenário acabou desencadeando uma guerra civil que durou doze anos (1980-1994). Seu estopim ocorreu quando grupos de ultradireita assassinaram o arcebisto de San Salvador, Oscar Romero, que defendia a democracia.

Em 1981, a unificação de diversos grupos guerrilheiros na Frente Farabundo Marti para a Libertação Nacional (FMLN) lançou sua primeira ofensiva. Na ocasião, os Estados Unidos forneceram ajuda financeira e militar ao governo salvadorenho.

A FMLN iniciou nova ofensiva contra o governo em 1989, ao mesmo tempo em que o candidato da Aliança Republicana Nacionalista (ARENA), Alfredo Burkard, vencia as eleições presidenciais. Um acordo de paz foi assinado em 1992. Com isso, a FMLN abandonou as armas e passou a disputar as eleições, mas o conflito causou mais de 75 mil mortes.

O partido direitista ARENA se manteve no poder até 2009, quando a FMNL elegeu Mauricio Funes. O partido também elegeu o presidente Nayib Bukele, entretanto, depois ele mudou para o partido Novas Ideias, do qual foi fundador.

Bukele, que tem apenas 39 anos, nasceu e cresceu nesse contexto de guerra e falta de democracia. Considerado um jovem millennial, foi ele quem fomentou a aprovação da chamada Lei Bitcoin, apresentada ao mundo com um viés de modernidade e melhorias para o acesso da população ao sistema financeiro (hoje, cerca de 70% dos salvadorenhos não utilizam serviços bancários tradicionais).

No entanto, o mesmo Bukele também já foi protagonista de episódios em que usou o autoritarismo, colocando em xeque a democracia de El Salvador.

Turismo: ondas, florestas tropicais e vulcões

Apesar de estar localizado na América Central, El Salvador é o único país da região que não possui litoral no mar do Caribe, mas sim no Oceano Pacífico. Por causa da temperatura e boas ondas passou a ser procurado por surfistas. A vila de surfistas El Tunco, localizada a 35 km da capital, tem mar bravo, com condições ideais para a prática.

Além disso, El Salvador possui várias belezas naturais, com florestas tropicais e vulcões. Um dos pontos turísticos famosos na região é o Lago Coatepeque, formado na cratera de um vulcão. Com 26 km², o lago tem fontes termais espalhadas em sua margem e abriga a ilha de Teppan, um local de culto maia.

Com cerca de 700 vulcões (dos quais, 26 ativos) em seu território, a geração de energia em El Salvador é, principalmente, derivada de fontes geotérmicas. E Bukele já divulgou a intenção de minerar bitcoin na estatal de energia, a LaGeo. Em 9 de junho, ele pediu à empresa para preparar um plano para a mineração de bitcoin no país.


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